Passados 40 anos desde o ‘Stonewall Brasileiro’, importante acontecimento para a comunidade lésbica, a luta e o empoderamento se fazem ainda mais necessários.
Segundo pesquisas recentes divulgadas pelo IBGE, o Brasil é composto por mais de 212 milhões de habitantes, onde as mulheres representam 51,1%. Ainda que, em números, a população feminina seja a maioria — uma diferença de quase 6 milhões, em comparação ao número de homens — o livre acesso ao poder econômico, com total garantia de direitos e reconhecimento imediato são concedidos aos “homens de bem”, inquestionavelmente merecedores de todas essas facilidades.
O clássico “It’s A Man’s Man’s Man’s World”, sucesso de James Brown e Betty Jean Newsome (1966), retrata estes e outros privilégios masculinos dos quais, o próprio ‘rei da soul music’, homem preto retinto e periférico, só pôde usufruir após a validação de sua arte por uma elite branca, heterossexual e de grande influência no entretenimento, responsável por sua ascensão e queda. Há relatos de que a própria canção na qual Betty Newsome é creditada como coautora não tem tanta participação de Brown como letrista, sendo uma reflexão feminista a respeito da disparidade de gêneros e o mundo dos homens “que não seria nada, nada sem uma mulher ou uma garota”. O caso foi levado aos tribunais, já que Betty alegava que não recebia os royalties pela composição, devidamente. Com essas informações, a música faz até mais sentido, concordam?
Enfim, esta não foi a primeira vez (e nem a última, infelizmente) que mulheres tiveram seus direitos deslegitimados e seu protagonismo esquecido no armário: na comunidade LGBTQIAPN+, por exemplo, o homem-gay-branco-cisgênero sempre esteve em evidência, fosse na ficção ou recebendo (equivocadamente) o título de precursor de importantes transformações sociais.
Nas novelas e programas de TV, os personagens homossexuais, ainda que retratados de maneira estereotipada e pejorativa, ganhavam mais força e apreço, enquanto personagens lésbicas não eram bem recebidas pelo público e crítica, sendo retiradas da trama logo nos primeiros capítulos e aparições, de forma descontinuada ou trágica. As que permaneciam, não tinham qualquer destaque positivo, a menos que seus destinos fossem alterados pela “descoberta do amor” no sexo oposto.Nas representações linguísticas e midiáticas, termos como “gay” e “homossexual” eram usados para definir, resumidamente, homens e mulheres que tinham atração por pessoas do mesmo sexo. Tempos depois, as siglas GLS, GLBT e GLBTT passaram a ser recorrentes, como tentativas de inclusão, respeito e representatividade. Em 2008, após adaptações, o termo LGBT sinalizava uma verdadeira revolução nas discussões de identidade de gênero e sexualidade, possibilitando ecoar as vozes excluídas.
Revolta de Stonewall: de Nova York com destino ao Ferro’s Bar – São Paulo
A Revolta de Stonewall (EUA) foi um marco na luta dos movimentos civis contra a opressão e pela liberdade de direitos da população LGBTQIAPN+, e demais pessoas que desejavam o progresso. Também promoveu o senso de comunidade, coletividade, orgulho e pertencimento, em uma época posterior ao regime de segregação racial. As ativistas Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera eram algumas das muitas mulheres transexuais negras e latinas que estavam na linha de frente deste evento de grande comoção, mas como de costume, foram reconhecidas tardiamente.
Conhecido como “Stonewall Brasileiro”, o acontecimento na cidade paulistana foi um verdadeiro levante de meninas e mulheres lésbicas frente aos constantes episódios de violência e apagamentos sofridos por elas não só na comunidade LGBT, como também no movimento feminista e nas políticas públicas vigentes.
Inclusive, suas lutas eram tratadas de forma generalista, leviana e pouco acolhedora, com certo desdém frente às suas reais necessidades, como o direito ao amor entre mulheres e o respeito às expressões de gênero das mais diversas, as quais contrariavam os padrões heteronormativos.
A técnica administrativa, cuidadora e voluntária da EternamenteSOU, Mônica Pita, tinha uma vida tranquila, até se assumir como lésbica, aos 19 anos. “Foi uma época muito difícil. Sofri preconceitos de forma latente. O preconceito foi cruel comigo. Ouvi coisas que nunca imaginei”, conta.
Concomitantemente, ela ingressou na militância, em um grupo de mulheres lésbicas, visando o acolhimento e o entendimento de tudo o que sofrera em tão pouco tempo. “A militância foi muito importante naquele momento, para que eu pudesse me compreender”, explica.
Abandono, sensação de não pertencimento, intolerância e abusos: o primeiro mapeamento de violência contra lésbicas no Brasil, realizado em 2022 pela Liga Brasileira de Lésbicas e Associação de Lésbicas Feministas de Brasília – Coturno de Vênus, afirma que 79% das 22 mil entrevistadas relatou já ter sofrido alguma situação de violência por conta de sua sexualidade e expressão de gênero.
Assédio moral e sexual, violência psicológica e institucional, e constrangimento em consultas com ginecologista são alguns dos casos de maior incidência entre a população.
Aos 59 anos, casada há 24, Mônica passou por algumas dessas situações ao longo da vida, como ser obrigada a se retirar de um restaurante sem poder ao menos terminar o jantar, no qual estava acompanhada de uma namorada da época.
As duas, que estavam sentadas uma de frente para a outra (respeitando o espaço ocupado pela mesa) pousaram os braços sobre a mesa e tiveram um único gesto afetuoso, no qual uma apoiou a mão sobre a da outra, o que para a lesbofobia já é o suficiente. “Pediram para a gente pagar a conta e ‘se’ retirar, pois ali era um restaurante de família e os clientes estavam incomodados com a nossa presença. (Relutamos e) Não pagamos a conta e saímos rapidamente, meio sem rumo e sem entender de fato o que tinha acontecido”, relata.
Até os anos 2019 (período que antecede a resolução do mesmo ano, que equipara a LGBTfobia aos crimes raciais), casos como este aconteciam sem qualquer amparo imediato e efetivo para as vítimas, que dependiam da disponibilidade dos órgãos de segurança pública e proteção ao cidadão — e com sorte, receber um atendimento humanizado — ou de organizações, instituições e pessoas da sociedade civil aliadas à causa.
Os episódios de preconceito, violência física, moral e psicológica são igualmente vivenciados no mercado de trabalho e na busca por recolocação profissional: um levantamento sobre empregabilidade de pessoas LGBT, divulgado no SENALE – Seminário Nacional de Lésbicas 2023, constatou que apenas 1% das lésbicas fazem parte do quadro geral de empresas privadas, recebendo, por vezes, tratamentos hostis contrários às políticas de diversidade que muitas das companhias dizem adotar.
Além disso, em maio de 2020, dois meses após a confirmação da pandemia da Covid-19 em território nacional, o desemprego atingiu 40% da população LGBT, fato que impacta na saúde mental dessas pessoas, contribuindo para os altos índices de depressão e suicídio, em especial quando analisados de forma interseccional, considerando a pluralidade étnica, etária, social, regional e educacional.
Em seus quase 60 anos, Mônica tem dificuldades em encontrar empregos formais e perdeu diversas oportunidades de trabalho. O sonho de concluir o ensino superior também foi negado, após a universidade na qual havia sido contemplada com uma bolsa de estudos cancelar o incentivo sem qualquer justificativa plausível. Também passou pelo desemprego, em virtude de uma entrevista concedida à uma revista, na qual falava abertamente sobre sua sexualidade e autoaceitação.
“Por todos os meus anos na militância, hoje, com minhas rugas e meus cabelos pintados, achei que seria visível, que seria mais tranquilo (viver). Mas não é. Me sinto triplamente invisível, por ser mulher, lésbica e ter mais de 50 anos”, conclui.
João Henrique Santos – MTb 73513