Idosos LGBT e o paradoxo da longevidade

Estatísticas mundiais apontam que a população está envelhecendo. Contudo, quais as condições que garantem uma maturidade feliz e saudável?

(fonte: iStock)
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Durante a Feira da Diversidade – DiversaFeira, evento que integrou a programação da 12ª Semana da Diversidade de Santos em outubro passado, o presidente da Eternamente Sou, Luís Baron, foi um dos palestrantes convidados para dialogar sobre “Políticas Públicas para Idosos LGBT+”, e já nos primeiros minutos da roda de conversa, que contou com a presença de cerca de 20 pessoas, Baron iniciou sua fala de forma bastante assertiva, abordando justamente a ausência e ineficiência de iniciativas públicas que atendam às necessidades e especificidades dessa população.

Ainda que as estatísticas apresentem dados e análises que evidenciam a longevidade — em especial pela evolução da ciência e tecnologia, que propiciam o diagnóstico precoce de doenças e seus tratamentos — é importante considerar que o acesso aos serviços de saúde, educação e demais políticas que contribuam para a promoção e proteção de direitos estão distantes da maioria dessas pessoas, que lutam para garantir o mínimo para sua subsistência diária.

Segundo informações do portal Olhe para a fome (2022), a insegurança alimentar atinge mais de 33 milhões de brasileiros e mais de 125 milhões de pessoas encontram dificuldades em alimentar-se de maneira regular: uma realidade que afeta cidadãos de todas as idades, em especial crianças e idosos, grupos etários mais propícios à desnutrição e suas consequências.

O desemprego e ausência de oportunidades no mercado de trabalho formal também são fatores que impactam nas expectativas de vida dos idosos, principalmente se considerarmos a recorrência com a qual esta parcela da população assume a responsabilidade de suprir com as necessidades dos demais membros da família: os resultados obtidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2022) revelaram que 22,1% dos brasileiros com 60 anos ou mais consideram-se os principais provedores de renda e suporte familiar. 

Estes e outros indicadores nos fazem refletir sobre o papel social do idoso, vítima constante da desinformação, violência, abandono, invisibilidade e demais estigmas que impactam em suas vivências. O etarismo e outros estereótipos relacionados à idade, gênero, etnia e sexualidade inviabilizam a maturidade em sua plenitude, classificando idosos entre ”produtivos e improdutivos”, conforme sua contribuição para o crescimento econômico mundial e capacidade de geração de renda per capita.      

Nesse sentido, é importante analisar quais condições propiciam aos grupos mais vulneráveis desfrutar dessa comprovada ‘longevidade estatística’, com autonomia, plena realização pessoal, autoestima e saúde integral.

As situações apresentadas nas próximas linhas podem nos ajudar a compreender de fato quem está apto a envelhecer com qualidade e o quanto essa perspectiva está distanciada da realidade de mulheres, pessoas pretas, pardas, periféricas e LGBT: essa é a história de mais uma brasileira. Um retrato da desigualdade e violência do ‘Brasil das estatísticas’, que pelo 14° ano consecutivo é responsável pelo maior número de homicídios de pessoas trans e travestis no mundo, cuja expectativa de vida é de aproximadamente 35 anos.

Resiliência para enfrentar as dificuldades

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Nossa personagem é uma das pessoas assistidas pelo programa de assistência social e demais ações de acolhimento da Eternamente Sou. A desconfiança e o medo, consequências dos inúmeros abusos e opressões sofridos por toda uma vida, são denotados em sua acentuada gagueira, ainda que se expresse de maneira consideravelmente fluída, lógica e coerente.

Sua relação familiar e interpessoal são igualmente marcadas pela violência, fatos pelos quais não permitiu que divulgássemos seu nome, sobrenome e sua imagem. Aqui, optamos por chamá-la de “Resiliência”, que em linhas gerais significa a habilidade de adaptar-se às adversidades e ressignificar situações que causaram algum tipo de sofrimento, encontrando formas de seguir em frente.

Ainda que durante a entrevista, Resiliência tenha se apresentado com o nome que consta em seu RG e CPF, sua identidade travesti será respeitada e por essa razão, ao longo do texto, seus pronomes serão ela/ dela, com as devidas adaptações.

Há mais de 50 anos em São Paulo, Dona Resiliência tem 67 anos e nasceu em Salvador (BA). Aos 6 anos de idade, o carro em que sua mãe voltava de Feira de Santana, município que fica a pouco mais de 115 km da capital, se envolveu em um trágico acidente com um pau de arara — veículo improvisado para o transporte de passageiros e cargas, muito utilizado nas regiões Norte, Nordeste e sertões brasileiros — não resistindo após um período de internação.

Enquanto o pai trabalhava, Resiliência ajudava a madrasta e as tias nos serviços domésticos, época em que sofreu inúmeros abusos, violência doméstica e o primeiro estupro, que tornaram-se cada vez mais recorrentes, entre seus 7 e 10 anos de idade, cometidos por primos, amigos e vizinhos, desde os mais jovens até os mais velhos. Aos doze, foi acolhida por um tio que morava em São Paulo, onde começou a trabalhar como faxineira e aos 17, mudou-se para o bairro Jardim Ângela, onde conseguiu um emprego como cobradora de ônibus.

As horas de trabalho exaustivas e demais condições físicas trouxeram complicações para sua saúde, já fragilizada pelas diversas violências sofridas desde muito cedo, situação que a fez abandonar a profissão. Novamente, em busca de trabalho e moradia, passou a residir com outras mulheres trans e travestis, realizando serviços de limpeza.

“De dia elas trabalhavam em lavanderia e à noite faziam programas. Eu era bem novinho e via que elas andavam sempre bem vestidas (enquanto) eu ganhava um salário mínimo, tinha que ajudar no aluguel, comida e não sobrava nada. (A dona da casa) me deu uma peruca e um vestido, e me levou pra avenida”, conta.

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Resiliência deixou os cabelos crescerem, realizou as primeiras intervenções nos quadris e próteses mamárias, e passou a viver da prostituição, onde ganhava o suficiente para custear seus gastos e pagar os carnês do INSS. Após complicações de saúde motivadas pelo uso de silicone industrial, decidiu “reverter” as cirurgias, o que para a época era algo ainda mais invasivo e arriscado.

Seguindo o ciclo da vida, conforme seus batimentos cardíacos e sua fé inabalável, para a nova moradia, comprou uma máquina de lavar e uma secadora, e em seguida, fez um curso de cabeleireiro, prestando serviços nestes segmentos para vizinhos e clientes, enquanto buscava por outras oportunidades de trabalho mais rentáveis. 

Conquistou seu primeiro apartamento e quando as ondas pareciam ficar mais calmas, recebeu um aviso de que o prédio estava irregular e com impostos atrasados. Deixou o local e com o valor da indenização (a quantia de 17 mil reais), investiu em bijuterias para vender.

Na Bahia, a vida chamava para uma reconciliação com seu passado. Cuidou do pai, ajudou os irmãos, sobrinhos, primos e agregados. Foi passada para trás e invisibilizada em seus direitos sobre o patrimônio familiar que também era seu, por direito. Em 2020, adoeceu e após semanas internada, estava viva! Pediu para que um sobrinho fosse buscá-la no hospital. Ele atendeu à solicitação prontamente e foi ao encontro dela.

“Quando chegou na porta da minha casa, ele disse ‘tio, quando você precisar… não me ligue mais não’. Tudo isso magoa, me deixa triste”, lamenta.

Atualmente, Resiliência vive sozinha, em seu pequeno apartamento e recebe poucas visitas. Amparada pela Bíblia, alterna entre sentimentos de medo, vergonha, melancolia e culpa por seus desejos sexuais e por suas experiências relacionadas à prostituição. “Sofri muito, em toda a minha vida. Tenho medo de tudo e todos, vivo aqui isolada, pois não consigo confiar mais em ninguém. Me apego em Deus, sou grata pela vida, mas se eu pudesse, eu parava de ter relações sexuais. Tem gente que diz que essas coisas não são pecado, mas eu acho que são”, conclui.

João Henrique Santos – MTb 73513

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