Na manhã do dia 20 de maio de 2021, algo extraordinário aconteceu. E não foi simplesmente mais uma Audiência Pública na Câmara dos Deputados, mas sim uma reunião acolhedora e afetiva que promoveu um espaço de fala e de escuta sobre um tema inédito no Congresso Nacional: as velhices e o envelhecimento da população LGBTQIA+ no Brasil. Com quase três horas de duração, a Audiência Pública Extraordinária (virtual) requerida e organizada pela Deputada Federal Tereza Nelma (PSDB-AL), reuniu especialistas, ativistas e militantes LGBTs preocupados em pautar a Política Nacional da Pessoa Idosa com questões específicas relativas a estas realidades. Formada em psicologia, a deputada federal que acolheu esta pauta tem em seu histórico político a “defesa dos direitos humanos e a inclusão social”, com reconhecidas ações, proposições e argumentações em defesa dos direitos das mulheres, das pessoas idosas, dos LGBTs e das pessoas com deficiência.
O encontro foi realizado três dias após a celebração do Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia – que marca a decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990, de retirar a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID). Apesar de ter sido promulgada (1994) e regulamentada (1996) após esse posicionamento da OMS, o tema das velhices e do envelhecimento das pessoas LGBTs permanece ainda hoje à margem da Política Nacional da Pessoa Idosa.
Conversamos com quatro participantes deste evento e todos eles foram unânimes em celebrar o encontro, até então inédito neste espaço e compreendê-lo apenas como um passo inicial nas discussões que podem culminar em alterações positivas e inclusivas nessa legislação que assegura os “direitos sociais à pessoa idosa, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade e reafirmando o direito à saúde nos diversos níveis de atendimento do SUS (Lei nº 8.842/94 e Decreto nº 1.948/96)”.
Para Luís Baron, vice-presidente da EternamenteSou, esta foi a primeira vez que o tema de velhices LGBTs foi tratado em âmbito nacional. “Na Câmara dos Deputados Federal, a discussão foi de alto nível, na qual o médico Milton Crenitte e o especialista Diego Felix Miguel, que são nossos queridos parceiros e pessoas de muito saber nessa área, puderam trazer estatísticas e dados sobre uma população velha e envelhecente. Creio que foi muito esclarecedor para aqueles parlamentares, para aquelas pessoas que têm suas vidas voltadas ao serviço público, mas também para nós. Também foi muito esclarecedor saber que nós temos acesso e poder de estar nesse tipo de ambiente. A questão das velhices LGBT foi tratada em âmbito federal com um enfoque forte, não apenas na questão das velhices, mas também da sexualidade da pessoa velha. Eu, pessoalmente, abordei a questão de que o Estatuto do Idoso não fala sobre sexualidade. E se você não fala sobre sexualidade, você não fala sobre orientação e identidade (sexual)”.
A professora Mestra em Educação Marina Reidel, mulher transexual e atual Diretora LGBT do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – MMFDH do Governo Federal, considera que este foi o pontapé inicial para rediscutir a Política Nacional da Pessoa Idosa, considerando também a pessoa LGBT. “Muitas vezes estamos fora dos debates com temáticas relacionadas às pessoas idosas, e é fundamental que a gente inicie esse debate. E não há lugar melhor para isso do que na Câmara dos Deputados, onde a participação da sociedade civil é fundamental”. Para Reidel, é preciso ampliar e promover a escuta das pessoas LGBTs, “trata-se de uma população que muitas vezes, por uma série de fatores, acabava morrendo jovem. É preciso dar voz a este público que felizmente está conseguindo envelhecer”. Ela destaca que as falas da sociedade civil foram fundamentais, e que as convidadas Marcelly Malta Lisboa, Presidente da ONG Igualdade (RS) e da Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, e Vice-Presidente da Rede Trans Brasil, e Letícia Lanz, Psicanalista e Especialista em Gênero e Sexualidade, são pessoas que, assim como ela, vivem o dia-a-dia como mulheres trans e trouxeram depoimentos reais e que marcaram o encontro.
Em conversa com o Blog da ESou, o especialista em Gerontologia Diego Felix Miguel ressaltou a relevância em abrir esse diálogo com o poder público, por meio da Comissão do Idoso, por esta ser uma comissão que pensa as estratégias e oportunidades em políticas públicas para a população idosa, principalmente a nível federal. “É histórico! Primeiro porque as velhices LGBT sempre foram invisibilizadas aqui no Brasil quando o assunto são os direitos para a pessoa idosa, quando falamos de políticas públicas, e até nos estudos da área da gerontologia, que é uma ciência que estuda o processo de envelhecimento”.
Ele destaca ainda o papel fundamental que a EternamenteSou vem tendo, desde 2017, ao contribuir para esse debate público. “Esse debate tem proporcionado novas atmosferas para a gente pensar o quanto as políticas públicas estão ou não em consonância com as velhices e, principalmente, de aspectos tão novos que estão sendo debatidos, que são as questões de gênero, a diversidade sexual, a própria questão do racismo, da xenofobia, dos preconceitos estruturais que nós temos na nossa sociedade, na nossa cultura. E que acabam sendo naturalizados através dos nossos atos e discursos. Acredito que essa oportunidade foi fundamental pra gente atuar em duas frentes: a primeira, com foco na população idosa de hoje, que é essa população idosa LGBT que está sendo negligenciada pelos serviços públicos, temos vários relatos que evidenciam isso; e também pensarmos em oportunidades de serviços no futuro, que eles já possam nascer com essas premissas da diversidade, do acolhimento à diversidade; com protocolos que favoreçam a equidade na gestão, a equidade de oportunidades, considerando as diferenças entre as pessoas”.
O diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis, compartilhou seu contentamento e gratidão em participar desta audiência pública. De acordo com ele, a questão da velhice e da pessoa idosa muitas vezes fica esquecida. “A gente discute muito as questões dos jovens, do adulto, as questões dos direitos humanos, mas esquecemos dos idosos. Eu acredito que essa questão da interseccionalidade da idade foi muito bem abordada, inclusive com a participação de vários militantes e ativistas de várias organizações, inclusive da EternamenteSou. Espero que todo ano a gente tenha algo parecido, uma agenda para discutir o tema”. Para Reis, é fundamental seguirmos este debate. “É preciso discutir, pautar e mostrar a situação das pessoas LGBTs idosas, incluindo sempre os profissionais da gerontologia e também ativistas e militantes nessa discussão”.
“Foi um início de discussão, mas não podemos nos desfocar dessa continuidade, ainda mais nesse momento em que os nossos direitos estão tão fragilizados”, afirma o Diego Felix Miguel. “O próprio sistema público de saúde e o sistema público de assistência social, estão passando por entraves políticos, de desmonte e até de desvalorização. Então por isso, agradecemos essa oportunidade, óbvio, mas agora, mais do que nunca, precisamos manter esse debate público vivo para que a gente possa garantir um futuro melhor para todas as velhices LGBT”, finaliza o gerontólogo.
Você pode conferir a íntegra deste evento legislativo no site da Câmara dos Deputados.
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O encontrou provocou o agendamento de uma série de webinários, que de acordo com Reidel estão previstos para acontecerem a partir do dia 2 de julho. Ela enfatiza que nestes encontros será possível coletar mais informações sobre o tema do envelhecimento das pessoas LGBTs. Este ciclo está sendo organizado por António Fernandes Toninho Costa, Secretário Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, do MMFDH, e será mais uma oportunidade para que as pessoas possam trazer suas demandas relacionadas às sexualidades das pessoas idosas. Os especialistas em gerontologia, Dr. Milton Crenitte e Diego Felix Miguel, que estiveram na audiência pública, também participarão destes encontros, que contará ainda com outras ongs brasileiras. Acompanhe as redes sociais para mais informações sobre este e outros encontros sobre o tema.