Notas de uma escuta online no Eternamente Sou
Escrito por: Leonardo Ferreira Galvão Tavares*
Envelhecer é um processo singular, vivido de maneiras muito distintas. Cada pessoa carrega consigo histórias, marcas, conquistas e dores. Mas sabemos que, em uma sociedade que ainda valoriza excessivamente a juventude heterocisnormativa, a velhice pode ser atravessada por preconceitos, invisibilidade e sentimentos de solidão.
No Eternamente Sou, desde fevereiro de 2024, atuo como psicólogo voluntário no programa de atendimento psicológico. Essa atuação dá continuidade à minha trajetória profissional, voltada há anos ao cuidado dessa população na clínica. A experiência tem confirmado a importância de um lugar de escuta dedicado a pessoas idosas e LGBTQIA50+, que muitas vezes se encontram afastadas da família, fragilizadas por questões de saúde ou marginalizadas por sua identidade.
Os encontros em sessão de psicoterapia não se trata apenas de tratar sintomas, mas de oferecer um lugar em que cada pessoa assistida possa reconhecer sua própria história e resgatar a dignidade de ser sujeito de sua vida. Em alguns casos, é a primeira vez que essas pessoas sentem que suas vozes são de fato ouvidas sem julgamento. A cada sessão, percebo como a palavra pode transformar destinos que pareciam já definidos pelo abandono ou pela exclusão. Noto que a escuta clínica permite, por exemplo, que pequenas rotinas sejam resgatadas, como ouvir uma música, cozinhar, escrever, frequentar um serviço de saúde ou de convivência, e esses gestos contribuem para alinhavar sentido à vida.
Muitas pessoas idosas relatam a dor de se sentirem “um peso”, sobretudo quando a saúde exige cuidados diários e a dependência de suporte e apoio cresce. Percebo ainda que a vulnerabilidade nessa fase da vida não decorre apenas da idade e do preconceito e discriminação sexual, mas também é atravessada por fatores como racismo, pobreza e baixa escolaridade, que aprofundam desigualdades e limitam o acesso a direitos e recursos. Essas vulnerabilidades também se refletem na dificuldade de garantir uma moradia digna, marcada por situações de desemprego, ausência de previdência ou outras formas de proteção social, o que aprofunda o sentimento de desamparo.
Para muitas destas pessoas, a solidão é um peso cotidiano, mas a clínica permite reconhecer também a potência das famílias de escolha, vínculos construídos ao longo da vida em amizades e grupos que oferecem apoio, afeto e pertencimento. Outro aspecto que observo na clínica é que a sexualidade não se extingue na velhice. O desejo, a busca por intimidade e a expressão da sexualidade permanecem, ainda que sofram transformações, e muitas vezes precisam ser reconhecidos e legitimados para que não sejam silenciados pelo preconceito etário.
Há também pessoas que atravessam o luto, como quem perdeu pais, parceiros ou filhos e pergunta: “quanto tempo dura a dor?”. Não há medida única. O que existe é elaboração, feita de idas e vindas, de datas difíceis, de lembranças que podem se transformar em homenagem e memória. A clínica não apaga a ausência, mas ensina a viver com ela de forma menos devastadora.
Em outros casos, o tema central é o abuso de álcool ou a dependência de outras substâncias psicoativas. Algumas pessoas relatam uma vida inteira de tentativas e recaídas. A clínica psicológica não moraliza nem prescreve soluções: ela ajuda a nomear riscos, identificar gatilhos, pensar estratégias, buscar apoio em serviços de saúde e grupos comunitários e fortalecer a rede. Em determinados casos, mesmo depois de décadas de sofrimento, é possível observar a força que ainda existe de cuidar-se. E quando esse desejo encontra um lugar de acolhimento, um olhar que legitima a sua existência, a transformação se torna possível.
Essas histórias, embora diversas, têm em comum algo precioso: revelam que a vida não perde seu valor com a idade, mas se enriquece com o vínculo e o reconhecimento. A escuta clínica, nesse contexto, funciona como uma travessia entre histórias muitas vezes hostilizadas e a possibilidade de narrar novamente, reencontrar-se.
Nesse processo, um ponto fundamental é o fortalecimento da rede de cuidados. Muitas pessoas idosas em acompanhamento psicológico também estão vinculadas aos aparelhos da rede SUS, como UBS, CAPS, CREAS, URSI ou outros serviços especializados. Além disso, no próprio Eternamente Sou, os atendimentos psicológicos caminham junto com o trabalho da Assistência Social e da equipe Jurídica, que acolhem demandas diversas, desde orientação para acesso a benefícios até encaminhamentos em casos de violação de direitos. A clínica, assim, não funciona de forma isolada, mas como parte de um tecido maior de apoio, onde cada profissional e cada serviço se somam, articulam juntos, na direção de mais dignidade e proteção biopsicosocial. Esse entrelaçamento mostra que saúde mental é inseparável do social e do jurídico, e que cuidar de si também é um direito a ser garantido coletivamente.
Envelhecer não precisa ser sinônimo de isolamento. Quando há lugar de respeito e acolhimento, é possível transformar a velhice em um tempo de autenticidade e reconexão consigo mesmo. Frente a perdas, dores e desafios, ainda há espaço para o recomeço, um novo horizonte.
*Psicólogo e Psicanalista em contínua formação, atualmente, pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Possui especialização em Psicanálise e Relações de Gênero: Ética, Clínica e Política pelo Instituto de Pesquisa em Psicanálise e Relações de Gênero.


